terça-feira, 29 de julho de 2008

Junção

Lúcia fica sentida por não poder ver o fim da discussão do bonito casal, já que o ônibus arranca do segundo ponto da Avenida Lirinopólis.
Ela se lembra de como ela e Eduardo também formam um casal vistoso, de como ele a conquistou, das ligações em tardes vazias que colorem o resto do dia, de como ele ri quando ela rima frases sem querer, de como ele embola a língua quando bebe meio copo de vinho.
Nossa, aquela é a Cristina! Como ela emagreceu, pintou o cabelo e aquela cara...ainda é o André? Droga...o ônibus arranca.
De repente ela sente uma saudade dos tempos de Colégio, de quando descia naquele ponto da Henrique Lacombe morrendo de preguiça mais doida pra encontrar aquelas carinhas conhecidas que agora andavam tão sumidas da vida dela. Lúcia pensou que também não podia reclamar muito do sumiço dos outros, ela se ocupava com a faculdade pela manhã, a tarde trabalhava como funcionária pública e a noite dava aulas de inglês e estudava. Ela, aliás, estava cada dia mais exausta, mas sabia que isso ia passar...faltavam alguns meses para ela se formar.
23h37 e ela estava abrindo a porta de sua casa alugada num bairro antigo e tranquilo da cidade.
- Oi James! Oi garoto! Onde está o nosso moço? Já chegou? Hein?
Acaricia o pêlo bonito do cachorro.
Lúcia reparou que havia uma vela no centro da mesa posta, tentou desesperadamente se lembrar se era alguma data especial, não conseguiu pensar em nada. Eduardo entra na sala, está vestido com aquela blusa roxa que Lúcia adora.
Lúcia sorri e seus olhos brilham, intensos.
Eduardo traz o macarrão de forno, abre o Miolo tinto e puxa a cadeira para ela sentar. Lúcia senta extasiada e coloca a bolsa na cadeira ao lado. Antes de mais nada, ele tira a caixinha de veludo azul do bolso.
Um sorriso úmido e um sim.

domingo, 27 de julho de 2008

Deveria

Admiro a coragem dele de comer cebola crua. Observo há alguns minutos mas sinto observá-lo desde menina, seu jeito de mastigar, o caldinho que escorre no canto da boca...Me pede para comer, desarranjado.
- A comida está ruim?
Faço que não com a cabeça, claro que não, eu queria abraçá-lo enquanto ele lava os pratos. Olho para a mesa onde comemos, ela me dá cada idéia...se ele ouvisse...
Inclino-me um pouco para conseguir enxergar seu corpo curvado, esse calor faz cada pensamento tomar conta da minha cabeça...
Já faz muito tempo que me escondo nos lençóis, e este homem me aparece, esse fantasma.
Decido-me. Levanto e digo de uma maneira involuntariamente gritada tudo que devia ter dito naquela tarde cinza que desde então me acompanha.
Digo que dele eu não tiraria nada, mas agora os dias insistem na claridade e as tardes, as tardes são quentes e tão bonitas, parecem zombar da minha entrega.
Nada, dele eu não tiraria nada, só esse vazio da casa.

sábado, 26 de julho de 2008

Ela, logo ela.

Há muito ela se senta na mesa de madeira e tenta rabiscar alguma coisa em seu caderno velho. As coisas já não fluem como antes...
Ela sente saudades de coisas que nunca viu, acredita que arrepios na nuca são muito mais que algo estritamente físico. Fica parada olhando por horas os livros, será que um dia escreverá como eles? Se imagina recebendo um convite formal pra ingressar na Academia Brasileira de Letras, idolatra a capacidade dos atores de transformarem-se.
As possibilidades em sua vida agora são tantas (e ela nunca soube escolher) que quando ela pensa nelas é como se sua cabeça amassasse e ela caísse em queda livre até bater numa cama de molas e ficar indo e vindo até a energia cessar. O estranho é que agora ela está se fechando e se contento, ela, logo ela. Aqueles que sempre estavam entorno, faziam com ela das lamúrias gargalhadas ou sons melhores, foram reduzidos a pouco freqüentes encontros rebuscados, nos quais ela olha nos olhos deles como que implorando, dizendo da falta que fazem.
Falta que ela muito chora, secreta nas suas paredes rabiscadas.
Ela, logo ela, que sempre odiou esses solitários recolhimentos, que nunca foi de pausas para reflexões. Ela luta para levantar e ir na direção oposta a eles, é duro não vê-los pela manhã, a única graça daquelas manhãs subseqüentes.
Quando ela escreve sobre a dor, crua, dramática, ela, logo ela, parece escrever de alguém, um Ela onde se sente fielmente mascarada.